Cultura vs Estratégia
Peter Drucker disse uma vez: “A cultura come a estratégia no café da manhã”. Ou será que come no almoço? Talvez até no jantar?
Claro que é um apócrifo. Ducker nunca disse isso. Essa frase tem sido atribuída errônea e repetidamente a ele por anos. A única pessoa que sabemos com certeza que escreveu essa frase foi Mark Fields, da Ford Motor Company, em 2006. Ele colou essa frase na parede do escritório e as pessoas a conheceram por lá.
Mas o que ela significa? Essa frase foi relevante quando Drucker, supostamente, a disse? E ela continua relevante hoje?
Responder essas perguntas é importante. Para explicar por que ela é importante, podemos destacar o artigo de Jeffrey Rothfeder — ex-editor da International Business Times — sobre o escândalo da Volkswagen. No artigo, levemente parafraseado, ele constata:
Por décadas, a Volkswagen tem praticado um estilo de gestão que impõe objetivos rígidos, e pune funcionários de baixo e médio escalão incapazes de acompanhar o ritmo. Executivos formulam objetivos estratégicos e prazos ousados com pouca participação de outros profissionais. Funcionários de baixo nível, pressionados pelas expectativas cobradas deles, tentam atender às demandas a todo custo. Intimidação por toda a hierarquia cria uma fronteira, ou às vezes além das fronteiras, uma cultura antiética.
A tentação é de culpar essa cultura antiética e ruim pelos problemas da VW. Mas talvez não seja por aí. A ÚNICA culpada é a gestão estratégica. Ela come a cultura saudável de cima para baixo.
Nesse artigo, originalmente publicado no blog da EQ Lab, você vai entender como e por que a estratégia matou, comeu e cuspiu a cultura.
Esse é um artigo deliberadamente polêmico e antagonista ao que vemos por aí. Mas nossa proposta é trazer um novo olhar sobre as transformações, então vai fazer bem.
Note como a cultura passou de um adversário genuíno ao trono da estratégia, a um forte fazedor de puxa-sacos.
Entenda como poderá ser o futuro da estratégia e da cultura.
Antes de Começar | Um Pouco de História da Gestão
A estratégia veio antes da cultura. Não tem discussão sobre “o ovo ou a galinha” sobre isso. O Boston Consulting Group, a firma original de consultoria estratégica, foi fundada em 1963. Drucker escreveu o primeiro livro dele sobre estratégia, “Managing for Results”, em 1964, apesar de já ter falado implicitamente sobre estratégia dez anos antes. “Ansoff’s Corporate Strategy” foi publicado em 1965. O trabalho seminal de Michael Porter, em 1979-80.
Em contraste, o forte movimento cultural começou no final dos anos 1970 ao início dos 1980 como resposta à vantagem estratégica percebida nas companhias japonesas, que desenvolveu sua supremacia competitiva através do trabalho duro e do comprometimento leal da mão de obra — que contrastava com o resistente e individualista trabalhador americano.
Mesmo sendo quase impossível falar sobre a vida organizacional sem mencionar a cultura hoje em dia, ela sofreu um rebaixamento a partir desse alto ponto inicial. Nos anos 1980-90, a cultura passou a ser vista como uma estratégia em si. Um jeito de vencer os japoneses. Para algumas empresas, notavelmente a Zappos, Southwest Airlines e Nordstrom nos EUA, a cultura continuava sendo estratégica. Mas, para muitos, ela se tornou tática. Não algo para ser vivido, mas algo para ser planejado e gerido.
Por que isso é um problema? Já viu os números sobre os níveis históricos de desengajamento e a perda da confiança na liderança? A separação entre os valores defendidos de uma empresa e como ela realmente faz as coisas causa disfuncionalidade operacional. E numa época em que o acesso a dados emergentes, orientados pelos funcionários e em tempo real, é talvez a maior vantagem competitiva, esse tipo de disfuncionalidade é extremamente problemática.
A estratégia realmente comeu a cultura. O grau em que executivos de alto escalão confiam na tomada de decisões estratégicas é incrível. Isso contrasta com o pouco que eles se preocupam com a cultura. O que significa que eles basicamente não se importam. Ou seja, eles praticamente não ligam. Nem um pouco!
Por que e como isso aconteceu? Isso causou problemas? E se causou, como podemos resolvê-los?
Em parte por causa das suposições informando os movimentos estratégicos e culturais. Enquanto gestão estratégica parece muito, muito complexa, ela é razoavelmente simples. Em contraste, enquanto a teoria cultural parece razoavelmente simples, ela é muito, muito complexa.
Vamos dar uma olhada.
Estratégia | A Teoria de Gestão Dominante Há Mais de 50 Anos
Estratégia | 1810, “arte de um general”, da estratégia francesa (século XVIII); e diretamente do grego strategia “escritório ou comando de um general”; de strategos “general, comandante de um exército”, e também o título de vários oficiais cíveis e magistrados; de stratos “multitude, exército, expedição, exército acampado”.
A linguagem da gestão estratégica inclui palavras como táticas, planos, objetivos, ativos, recursos, riscos, marcos, término (ou prazo) e execução. Ou são termos militares, ou que fazem referência à conquista de novas fronteiras, terras e riquezas.
Veja a etimologia de “término”, por exemplo. Cunhado durante a Guerra Civil Americana [como deadline em inglês], o termo teve seu primeiro uso apresentado na frase abaixo:
Do lado de dentro das paliçadas e a seis metros delas, foi estabelecida uma linha de término na qual os prisioneiros são proibidos de ultrapassar, dia ou noite, sob pena de serem baleados.
Ou “marcos”, com origem nos marcadores usados pelas tropas para marcarem o progresso da Roma Antiga.
Gestão militarista e estratégica é o pilar da educação MBA. Aprenda como planejar negócios e organização. Não necessariamente como fazê-lo. Mas como planejá-lo. E tem se tornado mais e mais influente. É a jogada do momento.
O pensamento estratégico de gestão é informado por apenas uma métrica. Vencer = lucros excessivos. Só isso. Nada mais. Nada. Zip. Tchau, tchau. Adeus.
São quatro as maiores táticas de gestão estratégica.
- Planejamento
- Diversificação
- Teoria dos Jogos
- Cultura
Planejamento: Há muitas ideias e teorias ao redor da noção de planejamento. Elas envolvem diagramas complexos de processos. Planilhas detalhadas. Documentos cheios de palavras. E listas. Muitas e muitas listas. Tipo, sério, um monte de listas. Como Matthew Stewart descreveu:
No fim das contas, planejamento estratégico é um jeito extravagante de dizer, “pense sobre o que você vai fazer e então faça”.
Diversificação: Esse é o elemento de mitigação dos riscos na gestão estratégica. Significa que você tenta ocupar o máximo de territórios possíveis. Isso reduz a exposição a qualquer ativo ou risco em particular. O que significa que você se mantém vivo mesmo se um dos seus territórios for tomado.
Teoria dos Jogos: Ou protegendo seus flancos. Significa que você coloca barreiras na invasão de ameaças de possíveis competidores. Impedindo possíveis revoltas antes que elas possam causar crises existenciais.
E por último tem a cultura. Que um dia já foi estratégica. Mas que agora é cada vez mais tática. Usada como uma forma de ganhar vantagem ao reduzir custos, mas mantendo as cargas de trabalho.
Cultura Organizacional como Tática da Gestão Estratégica
A cultura, sem dúvidas, competiu com a estratégia pela importância no nível executivo sênior por um tempo. Certamente nos anos 1980. Talvez até meados dos anos 1990. Mas não hoje em dia. Em vez de ser uma estratégia em si, cultura foi relegada a uma tática de gestão estratégica.
Quando a cultura era estratégica, o objetivo era simples. Elabore uma cultura positiva e você terá funcionários trabalhando arduamente, motivados e leais. Eles vão amar o serviço e vão amar a empresa. Os produtos serão aprimorados, o lucro vai aumentar, a qualidade de vida vai melhorar, e todo mundo ficará feliz.
Mas as coisas não funcionam desse jeito.
Logo ficou aparente que projetar culturas não funcionava. Você não podia agrupar um monte de pessoas numa caixinha bonita e fazer com que todas agissem do mesmo jeito. Culturas são dinâmicas e fluidas. Elas mudam conforme as pessoas mudam. Isso não acontece no sentido inverso. Sendo assim, culturas de gestão do topo para baixo jamais funcionariam.
Em vez de produzir funcionários que trabalham duro, motivados e leais, culturas projetadas produziram empregados ambivalentes, irônicos e melodramáticos.
- Pessoas que amavam certos elementos da empresa e odiavam outros.
- Pessoas que zombavam e ridicularizavam as discrepâncias entre a cultura defendida e a que realmente existia.
- Pessoas que criaram personalidades falsas e dramáticas para agir pelos requerimentos da cultura sem se envolverem emocionalmente no processo.
Aí veio a obsessão com a mudança de cultura. Isso adicionou ainda mais patologias organizacionais à mistura.
- Algumas pessoas se dedicaram demais às mudanças, feito mariposas atraídas pelo fogo dos marcos e prazos.
- Outras se tornaram cínicas e niilistas.
- Muitas existem num estado contínuo de perplexidade.
- Algumas surtam completamente, incapazes de lidar com as demandas por obediência total e lealdade misturadas num ambiente de mudança constante.
- Apenas as irônicas e melodramáticas se mantiveram psicologicamente saudáveis.
Executivos sênior sabem que culturas projetadas não têm funcionado como uma estratégia. Mas eles mordem a língua. Defendem valores que eles mesmo não cumprem. Por quê?
Primeiro, porque cultura é a tática de mobilização das pessoas numa gestão estratégica. E você precisa de pessoas para efetivar sua estratégia. Pelo menos no momento.
Segundo, porque tem sido uma teoria popular. Pessoas acreditam genuinamente que a cultura deveria dar um significado a elas. Essa é a cola que une uma organização. É um jeito fantástico de fazer pessoas trabalharem mais por menos dinheiro. Venda a elas uma cultura grandiosa e você fará com que elas se comprometam de corpo e alma.
Mesmo gurus da cultura no passado pararam de empurrar a ideia de culturas projetadas. Disseram aos seus devotos que o poder não reside mais na cultura, mas na pessoa. Você tem o poder de fazer qualquer coisa. Apenas mantenha uma atitude positiva e um pouco de gratidão. Seja autêntico, procure por sua paixão e você poderá alcançar o que quiser.
Isso ainda funciona como uma tática de gestão estratégica. Pode ser até uma solução complexa para o problema da cultura. Para quem busca acreditar numa cultura, ofereça isso a eles. Aos incomodados, perplexos e surtados, você pode acreditar em si e continuar trabalhando duro.
O resultado de ambas as táticas é o mesmo. Um fluxo pronto de pessoas acreditando que podem fazer qualquer coisa se continuarem suando a camisa. Não importa se acreditam ou não nos próprios líderes e gestores. Desde que continuem acreditando em si mesmos.
Estratégias de Cultura Uma Solução Complexa
Tá aí. A cultura foi completamente engolida pela estratégia. Fé em si, atitude e autenticidade foram completamente mastigadas pela estratégia. Estratégia é a única coisa que importa nos círculos dos executivos sênior.
Então por que Peter Drucker disse o que ele disse? Mesmo que ele não tenha dito nada!
Provavelmente é verdade que Drucker seguiu nessa direção. Ele tinha um misto complexo de ego e ética. Ele queria ser um grande nome no pensamento gerencial. E ele queria oferecer organizações que fossem socialmente relevantes e éticas na prática.
A mudança dele, de estratégia para cultura, conquistou isso. Ele podia competir com Tom Peters e sua tribo. Comprar a ideia de que cultura organizacional geraria funcionários felizes e uma sociedade ética de alta tecnologia.
Uma pena que não gerou nada disso. Então o que a gente faz agora?
A gestão das empresas do século 21 é dominada pelas teorias sonhadas em outra era. É esperado que gestores estrategistas planejem entre 1-5 anos no futuro. Teorias culturais foram baseadas na replicação de culturas nacionais e homogêneas nos ambientes organizacionais. Nada disso funciona mais. O mundo não é mais preto no branco (se é que foi um dia).
Na verdade, a cultura está morrendo a níveis organizacionais e nacionais. Para ser substituída por uma forma social naturalmente diversa e pluralista. Essa morte está produzindo os mesmos resultados em todo canto.
- Pessoas surtadas, temerosas, ansiosas e chocadas tentando encontrar significado para as próprias vidas.
- Pessoas que querem alguém para culpar e culpam tudo que parece diferente.
- Pessoas que zombam e fazem piada em cima de qualquer um que tente gerir os ideais culturais.
- E pessoas que enxergam a complexidade mas são marginalizadas no meio de tanto caos.
Não podemos nos apegar a uma forma cultural que está morrendo. Vivemos num mundo em rápida mudança, de sociedades altamente móveis e pluralistas. Aprender como lidar e mobilizar essa realidade é vital.
Se a cultura organizacional continuar sendo uma tática estratégica, eu não vejo muita esperança no futuro. Os recordes nos níveis de desengajamento vão piorar. Medo, ansiedade e perplexidade serão lugar-comum. Veremos pessoas desencorajadas em todo canto. Será distópico e brutal.
A solução é reempoderar a cultura. Não do topo para baixo como na forma original. Não como um método de fazer pessoas agirem de uma determinada maneira, ou trabalharem duro, ou se tornarem leais. Mas como parceiras e como um método de informar a contínua estratégia organizacional. Uma estratégia cultural.
O que isso significa e o que precisamos fazer?
- Jogar fora planos estratégicos de longo prazo. Planejar dois anos no futuro não faz sentido se o ambiente será completamente irreconhecível três-seis meses pela frente.
- Desistir de usar dados retrospectivos para formular decisões nos planejamentos estratégicos. Isso é inútil, e potencialmente extremamente perigoso, quando dados emergentes indicam tendências completamente diferentes.
- Parar de forçar pessoas a se encaixarem nas fortes demandas da cultura. Isso é pouco realista numa paisagem plural de identidades diversificadas. Isso também produz reações patológicas.
- Continuar proativo e alerta. Trabalhar juntos e felizes na direção de uma estratégia de longo prazo estática é uma impossibilidade, já que as coisas vão mudar e causar insegurança. Se mantenha à frente de mudanças dolorosas estando pronto para reagir ao desengajamento.
- Estratégias contemporâneas devem ser informadas pelos dados emergentes a partir das pessoas que fazem o trabalho operacional na prática. Aquelas no fundo e no meio da hierarquia. Aquelas que sujam as mãos. Que enxergam o que acontece no dia a dia. As que sabem quanto tempo leva para fazer as coisas bem feitas. Que notam quando outras pessoas abusam de atalhos ilegítimos. Que enxergam jeitos melhores, mais eficientes, de fazer as coisas.
- Gestão estratégica precisa se tornar interpretativa em vez de adivinhatória. Isso requer um método totalmente novo de planejamento e de realização do trabalho que ninguém, por enquanto, conseguiu capturar de um jeito simples e persuasivo.
- Seja lá qual forma esse novo método tome, é quase certo que irá produzir formas plurais de organizações. Se dados emergem internamente como uma informação interpretativa, então cada organização estará usando dos próprios recursos para moldar a si mesma. Teorias externas de gestão e organização rapidamente se tornarão obsoletas, já que são bastante estatísticas.
- Precisamos mudar como avaliamos funcionários. Personalidades que se moldam à cultura serão irrelevantes. Como você pensa será cada vez mais importante. Boas empresas empregarão uma série de diferentes pensadores; analíticos, sintetizadores, criativos, críticos, inventores, sistemáticos. Essa mistura eclética certificará que dados emergentes sejam trabalhados de perto antes que a próxima estratégia seja determinada.
- Cursos de negócios precisam parar com o método de modelagem de casos de sucesso. As empresas de sucesso da próxima geração serão as que sabem exatamente como estudarem a si mesmas. Não as que usam modelos de outras corporações (que normalmente têm similaridades parciais) para informarem decisões. Se você não sabe como encontrar bons dados, você vai tomar um monte de péssimas decisões.
- Teoria da gestão tem que ficar mais robusta e relevante. Numa época em que pensamentos bons e velozes serão vitais, você precisa confiar na sua sabedoria. Se as teorias que você consulta são pseudocientíficas ou piores, você será incapaz de tomar decisões práticas e informadas. Muito pensamento de gestão ruim se torna influente porque os bons gestores decidiram se tornar acadêmicos, em vez de ajudar empresas a fazerem negócios melhores. Cheios de jargões, festivais de teorias irrelevantes. Tem muita coisa boa por aí, mas as escolas de negócios e as publicações sobre gestão fazem o que podem para tornar o que é bom inacessível.
Acho que chegamos num momento decisivo. O rompimento da cultura da estratégia é óbvio em todos os níveis. Na sociedade, as elites políticas planejam e a cultura sofre. Nas organizações, os executivos sêniores planejam e a cultura sofre. Ou nós vamos tentar um novo jeito de fazer negócios ou vamos acelerar de cabeça num caminho doloroso e divisivo. Seja lá com qual distopia vier junto.
Então vamos evitar isso.